TER

 Meus queridos amigos,

Eu creio que o maior sinal de contradição que Cristo traz diz respeito exatamente à posse de bens materiais. O Senhor não utiliza meias palavras quando se refere a deixar tudo, vender tudo. E o Senhor pode dizê-lo como Mestre e sobretudo como testemunha, quando o Apóstolo define a atitude de Cristo mais do que um desapego, mas um esvaziamento.

Nisso é necessário compreender que existem necessidades pessoais e necessidades sociais. As necessidades pessoais como alimentar-se, respirar, descansar precisam ser vividas pelos discípulos de Cristo sob a ótica da mortificação, uma vez que o corpo sempre exigindo mais do que necessita enlanguidece a alma.

Mas há também igualmente necessidades da sociedade, às quais algumas pessoas podem se desvencilhar, mas não todas, para o bem da sociedade: assim, por exemplo entendemos a posse de bens e mesmo a necessidade social da reprodução da espécie humana.

Porém, essa segunda, ao longo dos séculos encontrou bastante especificação na doutrina da Igreja, de modo que aqueles que optam pela vida matrimonial conhecem (ou deveriam conhecer) muito bem os limites do exercício de sua vida sexual.

Mas resta o problema do ter, da posse dos bens materiais.

Isso sempre foi um desafio para os fiéis cristãos, uma vez que a avareza costuma ser infinitamente mais sutil que a impureza.

Especialmente porque se encontram infinitas desculpas para o acúmulo de bens: precisão orçamentária, segurança para a família, patrimônio para os descendentes.

A Igreja sempre promoveu e, o quanto possível, incentivou os três grandes sacrifícios que o homem pode oferecer a Deus: o sacrifício da vontade pela obediência, o da sensualidade pela castidade e o da confiança pela pobreza.

A pobreza é esse sacrifício: o sacrifício da confiança.

A destruição de qualquer arrimo material, físico, palpável. Para a confiança absoluta na Providência de Deus.

O que abre mão de sua vontade honra a Sabedoria de Deus, o que abre mão da sensualidade consagra-se ao Amor de Deus e o que deixa tudo oferta-se à Divina Providência.

Não é fácil. O ideal cristão da pobreza se reinventou ao longo dos séculos: desde o literal vender tudo e dar aos pobres até os monges, eremitas, peregrinos encontrando-se seu ápice no surgimento das ordens mendicantes, particularmente nos franciscanos.

A reinvenção desse ideal sempre teve que combater as espiritualizações e desculpas que o espírito fraco e desconfiado tenta colocar ao seu lado, para diminuir a extensão de sua força e o poder de seu "escândalo". A compreensão da pobreza "em espírito" segundo a qual a pessoa tem os bens mas não lhe é "apegada" precisa ser comprovada pelo desprendimento real dos bens. Igualmente a ideia de uma pertença dos bens materiais à Igreja ou à uma Ordem enfraquece o sinal de contradição que a pobreza deve representar para o mundo. Não convence (nem está convencido) aquele que fez voto de pobreza mas anda com o carro de último tipo, ou come finas iguarias porque não são propriedades suas, mas da Ordem.

Reduzir a pobreza à um não apego, seria como reduzir a castidade ao "não-sexo", fora isso, tudo sendo permitido.

Meus amigos, a quaresma que traz a ideia do deserto e o conselho da esmola ligada à mortificação, é uma incitação que a Igreja faz a todos os fiéis para a Santa Pobreza, para a Senhora Pobreza, como dizia S. Francisco.

Esse mesmo Santo combateu essas mitigações da vivência da pobreza: trago três fatos de sua vida para ilustrar: 

Um é quando vendo na mesa dos frades ricas iguarias, dadas por alguém, e os frades sentados à mesa, comendo e bebendo como num banquete, Francisco enverga o capuz, pegas uma tigela e pede esmola aos frades, que nesse gesto reconhecem a falta de pobreza em que haviam caído.

Um segundo é quando Francisco volta da Terra Santa - alguns julgavam que tinha morrido - e vendo os conventos amplos que estavam sendo construídos, sobe e começa a lançar as telhas muro abaixo.

A terceira é uma fala do próprio Francisco que parece ter lido um autor da antiguidade chamado Salviano de Marselha, porque as frases que utiliza são praticamente as mesmas. Francisco cita o homem que renuncia à sua vontade, renuncia à sua sensualidade, renuncia a todo o tipo de pecado, mas quando lhe perguntam se renuncia ao dinheiro, o homem diz que não o pode, por causa de sua família. Numa expressão inusual no vocabulário franciscano, S. Francisco o chama de "desgraçado" e profetiza que sobre sua sepultura aqueles por quem ele não renunciou ao dinheiro e, por isso, perdeu sua alma, o chamarão de maldito, lamentando o "pouco" que lhes deixara.

Meus prezados amigos, olhemos para o fundo de nós mesmos e vejamos o quanto o fogo do sacrifício da confiança está aceso dentro de nós. Pensemos detidamente no quanto o nosso coração está apegado ao dinheiro ou ao que ele pode nos dar.

E recordemos que a pobreza é uma mãe. Não adianta acolher a mãe e rejeitar os filhos. Não adianta querer ser pobre e lamentar o fato de ter que pedir dinheiro, ou de não possuir algo que desejaria. Seria como querer ser obediente, desde que todas as ordens recebidas fossem misteriosamente a nossa vontade.

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