S. JOÃO BOSCO - O HOMEM QUE AMOU POR INTEIRO (CONFERÊNCIA)


 Meus prezados amigos,

Quando estudamos os mandamentos, e lemos sobre o primeiro mandamento, vemos que antes de dizer “amar” ou “amarás” o texto bíblico começa com o verbo “ouvir”, de tal modo que a expressão semah, o imperativo do verbo ouvir, se tornou o nome de uma das principais orações do povo hebreu. O próprio Nosso Senhor Jesus Cristo quando questionado sobre os mandamentos reza o semah acrescentando à ele o mandamento do amor ao próximo.

“Ouve, Israel”. Deus não lança os mandamentos sobre os homens, mas começa como um Pai a dizer: “Ouve” antes de dar os mandamentos.

Esse “ouve” dito antes do primeiro mandamento, como que implicitamente se repete diante dos outros. “Ouve” não significa apenas a percepção de um som, mas um pleno acolhimento no coração da palavra que segue. Não nos equivocaremos em pensar que esse “ouve” hebraico encontra a sua mais fiel tradução na língua grega na expressão “guardar no coração” que o Evangelista usa somente em relação à Santíssima Virgem. Ela é a aquela que ouve, é a Virgem que não apenas presencia palavras e ações, mas que as “ouve”, as guarda no Coração.

Não por acaso, a primeira palavra da Regra de S. Bento começa com essa mesma palavra: “Ouve”, em latim obsculta. S. Bento compreende igualmente que as pessoas já estão repletas, cercadas de barulhos, de vozes, de ruídos. A Regra que escreveu não pode ser mais um barulho, mais um ruído, é necessário ouvir, é necessário meditar no coração.

Mas ao mesmo tempo, o verbo ouvir nunca é uma expressão passiva na Sagrada Escritura. Ouvir se tornará o verbo que refletirá a ação de Deus. Na Sarça Deus diz que ouviu o clamor de seu povo. E o ouvir de Deus se transforma numa ação, nesse caso na grande ação: a páscoa. Ainda hoje quando rezamos pedimos a Deus que nos ouça, e dizer isso não significa apenas que queremos que nossas palavras cheguem até Deus, mas que a sua graça desça sobre nós.

Somente quem ouve é capaz de amar.

É no ouvir que o coração se dispõe a amar. S. Paulo não diz outra coisa ao afirmar que fides ex auditu, que a fé vem pelo ouvir.

Aquele que ouve, é capaz de amar, de crer e de esperar.

Mas voltemos ao primeiro mandamento. 

Não se trata apenas de ouvir e de amar, mas de amar de todo coração, de toda alma, de toda mente, de toda força. A repetição da palavra todo/toda não é um mero recurso rabínico. Mas é uma manifestação da essência de Deus. Em Deus não há divisão, Deus é uno. Adonai ehad. O Senhor é Um, não no sentido de um artigo indefinido, ou de uma possível soma, subtração, multiplicação ou divisão. O Senhor é um, não é um número. O Senhor é único.

Será exatamente a força da fé no Deus único que separará o povo eleito dos demais povos. Os judeus serão os adoradores do Deus único. E a Igreja, que toma o lugar da sinagoga, baseia toda a sua doutrina exatamente na confissão do Deus Único em Três Pessoas Divinas. A própria essência católica da Igreja que a torna missionária levará ao confronto com os demais povos que se afundavam na idolatria dos deuses pagãos, num ponto tal que os cristãos eram por vezes chamados de ateus, porque não eram apenas adoradores de um Deus único, mas proclamaram com um fervor infinitamente maior do que os judeus que só existe um Deus: Adonai ehad.

A existência de um único Deus, requer não apenas que se ame, mas que se ame unicamente.

Um só Deus nos céus, um só coração no peito dos homens. Um só amor.

É aqui que gostaria falar das “conversões dos santos”. É na descoberta de que só deve um amor, que é o amor de Deus, o amor a Deus no qual se ama as criaturas que podemos identificar o momento da “conversão” dos santos.

Assim, S. Francisco, quando numa visão o Senhor lhe pergunta se se deveria servir ao Senhor ou ao servo, compreende a necessidade de amar unicamente a Deus, de ter um só Pai, Deus, e isso se materializa no despojamento de tudo, na nudez em plena praça para sem nada, sem pai na terra, poder dizer Pai do céu.

Outro Francisco o de Bórgia, terá esse momento na visão do corpo apodrecido da Imperatriz Isabel. Ali entenderá a necessidade de servir a quem não possa morrer, e só não pode morrer aqu’Ele que é o autor da vida.

Assim, também, Teresa de Ávila, na contemplação de um Cristo sem nada, descobre o Cristo-Tudo ao qual só se pode dar tudo, ainda que em si mesma reconheça não ter nada.

Muitos Santos tiveram nesse momento uma cena quase épica, muitas vezes retratadas por pintores e escultores. Mas e o nosso S. João Bosco? Quando em sua vida se decidiu pelo único amor?

É um fato que de tão simples, muitas vezes passa oculto. Pensa-se que teria sido o encontro com o menino Bartolomeu Garelli na sacristia na festa da Imaculada de 1841 que marcaria a sua conversão, ou encontro com o Pe. Cafasso, ou alguns dos seus vários êxtases místicos aos quais humildemente chamava de “sonhos”, mas o grande momento da vida de Dom Bosco foi literalmente um acidente.

Os Santos possuem uma capacidade dilatada de amar. Não é santo quem não ama. Mas nisso, os Santos são iguais aos demais homens, que andam com o coração na mão perguntando quem quer.

O jovem João Bosco tinha um passarinho, ao qual devotava um grande amor, esse amor era, de certa forma, retribuído pelo pássaro em sua beleza e em seu canto. Porém, um dia, João Bosco entra em sua casa, depara-se com a gaiola aberta e vê no chão algumas penas. O pássaro tinha morrido, talvez um gato ou cachorro o comeu.

Fatos assim, acontecem milhões de vezes por dia. Mas para o jovem futuro Dom Bosco, a morte do pássaro e o desgosto que isso lhe causou, compreender a grandeza, a imensidão da sua capacidade de amar, e entendeu que nenhuma criatura deveria ser objeto de seu amor, somente Deus poderia abarcar a sua capacidade de amar.

E assim o jovem João Bosco que certamente já amava a Deus, se converte. A conversão não é apenas amar a Deus, mas amar somente a Deus.

É porque amava somente a Deus que pode amar de verdade as pessoas, especialmente as que lhe faziam mal. É porque amava somente a Deus que não desistiu da Obra que Deus mesmo lhe confiou. É porque amava só a Deus que pode amar de verdade os jovens, mesmo quando lhe retribuíam com o mal o bem que fazia.

Deus único pede um amor único.

E aqui, encontramos, em certo sentido, o grande limite que nós impomos a Deus.

Quando não damos tudo, não permitimos que Deus possa agir. Não é a nossa negação que limita a ação de Deus, mas a nossa parcialidade.

O Deus absoluto, único, indivisível exige um amor absoluto, único e indivisível.

Foi no desgosto de uma perda de passarinho que o menino Dom Bosco resolveu nunca mais perder. 

Nosso Senhor em Bethânia revelou o único, a melhor parte que nunca será tirada: Ele mesmo. Muitas escolas de espiritualidade usaram a expressão “Deus só” como a base de sua doutrina.

S. Francisco, seiscentos anos antes de Dom Bosco dizia de modo semelhante: Deus meus et omnia. A caridade para com o próximo não é uma segunda caridade, mas é um afluente daquela devida a Deus, por isso o catecismo da Igreja sempre ensinará o amor a Deus e ao próximo por amor a Deus. As criaturas não podem ser amadas por si mesmas, o amor às criaturas por si mesmas é sempre um desastre. As criaturas existem para serem amadas como decorrência do amor a Deus.

E isso se aplica, de um modo especial, ao apostolado. Dom Bosco não amava os jovens, amava a Deus e no amor de Deus amava os jovens. Desse modo, querido ou ofendido, amado ou odiado, Dom Bosco permanecia estável porque o amor de Deus é estável.

A loucura que mais de uma vez tentaram diagnosticar-lhe era fruto disso. Nada o desviava do caminho, endividado até o último fio de cabelo agia como se pudesse dispor dos reinos da terra, porque sabia que pela caridade dispunha já do Reino dos Céus.

Se tinha a certeza de que Deus lhe daria o céu, porque iria duvidar de que Deus lhe daria alguns milhões de liras aqui e acolá. Sim, morre endividado, mas não como um jogador viciado ou um comprador compulsivo, morre endividado para ser sinal da loucura da cruz.

As suas promissórias eram atestado de uma confiança que excede o limite do simples matemática para o limite sem limites do amor de Cristo.

Não perder.

Dom Bosco com sua alma desportiva encontrou o melhor modo de não perder nada: não ter nada. Exceto almas. Da mihi animas, coetera tolle.

Tirai o resto.

E nesse contexto que se compreende os milagres retumbantes de S. João Bosco: não perder as almas.

Recordemos o jovem Carlos que frequentava o oratório e morreu tendo ocultado um pecado grave na última confissão e solicitava a presença de Dom Bosco para poder fazer sua confissão. Porém Dom Bosco não se encontrava no Oratório. Ao chegar sabe que o jovem não apenas esteve gravemente doente, mas que estava já morto. S. João Bosco vai até onde o rapaz já era velado, pede que todos saiam e ordena que o jovem levante-se - parece-nos estar novamente nos tempos bíblicos! - o jovem se levanta, embora seu corpo continue gelado. Dom Bosco o escuta em confissão, ao concluir, os presentes como que invadem a sala para ver o que acontecia e encontram o jovem dizendo: "Dom Bosco tirou-me do inferno!". Depois de algum tempo, Dom Bosco diz ao jovem: "Carlos, podes escolher se queres ir ao Paraíso ou ficar na terra." O jovem escolhe ir para o Céu, e reclina suavemente a cabeça sobre o peito.

Dá-me almas!

Percebendo que o seu próprio fim se avizinhava com toda tranquilidade diz aos que o circundavam: "Eu espero a todos no Paraíso!"

Imaginemos, meus amigos, o que será isso! Ter essa tranquilidade. Enquanto tantos se desesperam diante da morte, gritam implorando por uma vida que não mais terão. 

E Dom Bosco pode olhar para os que ganhou para Cristo e dizer: "Eu vos espero no Paraíso!"

Peçamos à Santíssima Virgem, que tudo fez na vida de S. João Bosco, que interceda por nós, especialmente nesses tempos difíceis em que a Santa Igreja sofre sua Paixão, para que de coração grande amemos só a Deus e n'Ele amemos a todos.

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