A DIFERENÇA ENTRE POSSIBILIDADE E CONVENIÊNCIA


Quando se fala em conveniência, pode-se ter, em princípio, uma ideia depreciativa. De fato, hoje a palavra conveniência está muito ligada à ideia de vantagem, falsidade etc.

Mas eu gostaria de, no texto que estou escrevendo, compreender conveniência como S. Paulo usa essa palavra: “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém”, assim, mesmo tendo a certeza de que não devo ser o primeiro a definir, gostaria de me referir à conveniência como um limite moral imutável.

Quando pensamos em possibilidade, também pensamos num limite, mas em última instância é um limite material. Por exemplo: o homem não pode ficar invisível. Até esse instante, que eu saiba, não é possível que uma pessoa se torne transparente. Há um limite material (químico, físico, biológico) que impede essa ação tornando-a impossível.

Mas quando usamos o verbo “poder”, muitas vezes, estritamente falando, estamos nos referindo a convir, ao que é conveniente.

Por exemplo, um filho pode bater nos seus pais? Não!

Mas, na verdade, estamos dizendo que é possível que um filho bata nos seus pais, e que, sendo possível o filho não pode (no sentido de que não lhe é permitido do ponto de vista moral, ainda que seja possível do ponto de vista físico) fazer tal ação.

Então, o que dizemos é que, ainda que possa (fisicamente), não deve (moralmente), não convém.

Pensemos na relação entre ciência e moral.

Há duzentos anos não se considerava a possibilidade da fecundação in vitro ou da clonagem. Nem tampouco se entraria na discussão de o quanto tais avanços científicos poderiam ser usados em plantas, animais ou seres humanos. Se se perguntasse se um homem poderia criar outro em laboratório a resposta era não, no sentido de possibilidade. Acontece que tal coisa hoje é possível. Então se dizemos que ainda não se pode, não estamos mais nos referindo a um limite de possibilidade, mas de conveniência.

Nunca o fato de que uma coisa fosse possível foi garantia de que fosse conveniente. Os mandamentos não fariam sentido se determinassem proibições sobre coisas que fossem naturalmente impossíveis. Os mandamentos não prescrevem “não vos transformeis em lagartixas”, mas, “não matarás”. A primeira coisa é estritamente impossível, a segunda, porém ainda que possível (matar) não convém, é nesse sentido, que se diz que não se pode, não convém.

Se algo ontem era impossível e hoje é possível, é necessário aplicar os princípios morais para compreender sua conveniência. Alguns serão convenientes, outros não. Se é lícito estimular a ovulação ou tornar o sêmen mais saudável por meio de medicamentos, não é lícito (ainda que possível) colher o óvulo e o sêmen e realizar a fecundação in vitro.

Para compreender a crise na Igreja, é de fundamental importância que se compreenda a diferença entre poder e convir. O que sempre se referiu como poder não era, de fato, uma impossibilidade, mas uma inconveniência. Podem as autoridades romanas atuais instruírem de modo diverso do que sempre foi ensinado?

Sim.

Esse sim, não significa que se tornou permitido, mas que não há um limite além do moral, ou seja a, conveniência para tal ação. As autoridades romanas podem ir contra o que a Igreja sempre ensinou, mas não convém.

A infalibilidade papal não se estende aos seus colaboradores, e nem mesmo à pessoa do Papa, salvo em circunstâncias especialíssimas. A “piedosa” ideia de que um Papa morreria fulminado por um raio antes de proferir uma sentença heterodoxa não corresponde à correta compreensão do dogma da infalibilidade. 

Compreendendo de forma correta, as intervenções de Deus coincidem com os limites humanos, por exemplo, uma cura só é considerada milagrosa quando se chegou na porta de todos os limites científicos. Se os fiéis podem estudar e conhecer o que a Igreja sempre ensinou e transmitir isso aos outros fiéis, esperar uma intervenção extraordinária de Deus, seria o mesmo que tentá-l’O. Portanto não haverá raios, enquanto houver inteligência.

Porém, os fiéis têm limites. Os leigos têm limites, os padres têm limites e os bispos têm limites. Não são os mesmos limites, mas são limites.

Quando se refere à pessoa do Papa ou de seus colaboradores, devemos distinguir o que seria uma fala no sentido comum, e outra no sentido estrito.

Tentemos dar um exemplo: se vejo uma pessoa um tanto febril, tossindo e espirrando, digo que ela está gripada e que deveria tomar suco de laranja. A pessoa que ouviu isso de mim, não deve tomar essa palavra como um diagnóstico e prescrições médicas. Eu não sou médico, é guiado pelo mais comum do senso comum, que disse que a pessoa está gripada e que lhe recomendei que tomasse suco de laranja.

Ao dizer isso, porém, não fui um estelionatário. E a pessoa que sabe que não sou médico, deveria buscar um, porque só um médico pode diagnosticar uma doença e prescrever seu tratamento. Provavelmente, o médico aprofundará o que eu falei. Dirá, mediante exames, qual tipo de gripe e junto com a prescrição de Vitamina C, determinará o uso de outros remédios. Isso é a sua função.

Mesmo que eu reconheça que uma pessoa está gripada, não posso prescrever um antibiótico... Se não há médico, ou se o médico não atende adequadamente o meu amigo gripado, eu devo fazer o possível para que ele não morra e não passe a doença para outras pessoas, e pedir a Deus, que apesar das minhas limitações, o meu amigo se cure.

Voltemos às autoridades romanas: elas são o médico.

Caberia a elas diagnosticar os erros e combate-los. 

Mas eu, mesmo limitadamente, posso identificar que certas coisas não estão de acordo com o que a Igreja sempre ensinou, me preservar desse erro, buscar preservar os demais e combater esse erro. Mas não cabe a mim, num sentido estrito, dizer que uma pessoa seja um herege.

É claro que dizemos isso, mas não significa que abrimos um processo no Santo Ofício, estudamos todas e cada uma de suas proposições com uma junta de teólogos e chegamos a esse veredicto. É como dizer que quem espirra, está gripado.

Se sobre um assunto o Papa S. Pio V disse “sempre” e sobre o mesmo assunto um outro Papa posterior diz “nunca”, ainda que não se trate específica e diretamente de um dogma, mesmo uma pessoa sem fé, mas com lógica, diria que necessariamente um dos dois estaria errado.

E é possível que isso aconteça? É claro, e infelizmente, evidente.

Porém, não convém. Conviria que as autoridades romanas nunca se desviassem do que foi ensinado por todos, crido por todos e em todos os lugares e tempos. O dizer que elas não podem, não é um limite físico, mas moral, que pode sim ser rompido, sob pena de pecado para elas e para os que, indo contra a lógica mais elementar, as seguirem.

Mas não cabe a um fiel, mesmo um padre ou bispo, determinar que as autoridades romanas sejam heréticas. O fiel, padre, bispo, só pode agarrar-se ao que a mesma Igreja Romana sempre ensinou e não se omitir diante dos erros de quem quer que seja, porque não importa quem disse, mas o que foi dito.

Não cabe a mim nomear um prefeito de tal dicastério ou condená-lo como herege.

Ainda que seja.

Os “diagnósticos” aos quais os simples fiéis chegam são puramente senso comum, lógica. Não são declarações oficiais, são constatações.

Estamos aqui tratando sobre o que é verdadeiro, diante do que é falso.

Porém, o verdadeiro está ligado ao bom e belo.

Se um fiel, um simples leigo, aprendeu de acordo com a Tradição da Igreja que a Missa é um Sacrifício; se a Igreja Romana determinou o uso de um Rito da Missa no qual a verdade resplandece, esse Rito não é apenas verdadeiro ou belo, é necessariamente e absolutamente bom. E a árvore boa produz frutos bons.

Do ponto de vista filosófico e teológico é impossível que uma coisa seja verdade sem ser bela e boa. Igualmente é impossível não considerar isso sempre em absoluto. Totalmente verdadeiro, totalmente belo, totalmente bom. Não pode haver “mais ou menos”, isso é moralmente impossível, inconveniente, mau. O “morno” é pior do que o frio.

Se surge um outro rito da Missa em que existe alguma verdade, mas que também se pode afirmar ou praticar o erro; pela sua ambiguidade esse rito perdeu a verdade em absoluto, portanto perdeu a beleza e a bondade em absoluto. Como não existe meia bondade, mas bondade ou maldade, esse rito é mau. E como árvore má, produz maus frutos. 

O problema não é o que tenha de verdade, mas que tenha parte de verdade, e que em si mesmo coloque verdade e erro como opções em pé de igualdade. Nisso é corrompido, nisso é mau.

Não cabe porém aos fiéis criar um novo rito, corrigir esse rito. Mesmo um padre não pode fazer uso desse rito selecionando o que houver nele de correto. O fato de que o padre faça isso, não corrigiu o rito em si mesmo, e o rito em si mesmo, se falta lhe falta plena verdade, é mau.

A correção ou criação de um Rito cabe apenas às autoridades romanas.

O que os fiéis podem, no sentido de devem, fazer é recorrer ao Rito anterior. Que é a norma habitual da Igreja: se houver duas afirmações distintas sobre o mesmo assunto, ficar com a que for mais antiga.

Os fiéis, padres e bispos, que recorrem às antigas práticas, por causa da fé de sempre, se arrogam menos o papel de guia da Igreja do que aqueles que acham ter autoridade de reformar as coisas novas.

Os primeiros sabem qual é seu lugar, os outros não sabem.

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