MEDITAÇÃO SOBRE A PAIXÃO DO SENHOR III

 

Diz o Espírito Santo: "Diante dele desviávamos o rosto." (cf Is 53, 2)

Por que a humanidade desvia o seu olhar de Cristo em seus sofrimentos?

Por que custa a tantas almas olhar o crucifixo? Por que se considera traumático um retrato mais autêntico do que foi feito com o Sacrossanto Corpo de Nosso Senhor?

A razão é dupla.

Desviamos por repulsa. Desviamos por vergonha.

Desviamos por repulsa, porque temos repulsa a todo e qualquer tipo de sofrimento, mesmo o alheio. Gostamos de fazer de conta que vivemos num mundo sem dor, sem sofrimento, sem morte. Enganamo-nos a nós mesmos durante dias, meses, talvez anos, e o mundo se nos aparenta mais com um jardim de delícias do que um vale de lágrimas.

É necessário esconder o sofrimento humano nos boxes de um hospital, num quarto isolado de um asilo. É melhor fazer de conta que não existe pobreza, fome, exploração.

É necessário recorrer a todos os tipos de calmantes e analgésicos para que o mundo mitológico que criamos não desmonte por completo...

Vale de lágrimas... Poucos sabem, mas foi um monge que nasceu aleijado, que foi posto num mosteiro aos sete anos pelos seus pais porque não tinham mais como cuidar dele que escreveu a Salve, Rainha. Quando digo aleijado, quero resumir: paralisia infantil, palato fendido, paralisia cerebral e espinha bífida. Seu nome: Hermanus Contractus. E se esse nome lhe pareceu por demasiado solene, contractus, quer dizer, contraído, aleijado.

Ele não temeu, até por não ter outra escolha, de olhar cara a cara o sofrimento. E de sua pena saiu a Salve, Regina, ou pelo menos a maior parte dessa belíssima oração, sendo as três últimas exclamações feitas por S. Bernardo.

Vale de lágrimas. O sofrimento é sempre um chamamento à realidade, por isso olhar o sofrimento de Cristo materializado numa imagem é algo tão custoso. Dele desviamos o rosto. 

Não! Hoje não!

Olhai, se possível numa imagem, ou pelos olhos da inteligência, da imaginação, o Senhor. Olhai-o com a túnica branca, roupa que identificava os doentes mentais, que Herodes mandou revestir-lhe. Olhai se ainda há branco nessa veste? Olhai depois, pouco antes de sair com a cruz às costas, o Senhor agora vestido com a túnica que a Santíssima Virgem lhe teceu. Percebei que cada vez mais, a cada passo mais, essa túnica vai tomando uma cor nova, a cor do sangue.

Percebei as costas do Senhor arrebentadas pela flagelação romana, na qual a maior parte dos condenados já morria. Sim, é uma costela que vedes, ali talvez algum gancho do flagrus - o chicote romano com pontas de pregos e anzóis grossos - arrancou até os músculos do Salvador.

Vedes a perícia dos soldados em crucificar o Senhor? Suas Mãos que criaram o mundo agora estendidas sobre o madeiro, os soldados apalpam para achar o "espaço de Desdot" e cravam os pregos à marteladas e os nervos do Senhor se fendem ao ponto de que alguns de seus dedos não possam mais abrir-se. E as mãos que criaram o mundo de modo admirável de modo ainda mais admirável iniciam a sua redenção, a sua re-criação.

Olhai a cruz erguida! Vede o rio de sangue que jorra, eis que o madeiro se tornou ornado de púrpura. E as pedras do Calvário também recebem esse rubro do Sangue Redentor. Vede a asfixia crudelíssima que não permite ao Senhor mais falar. Ora se ergue sobre os pregos para respirar, mas esgota-se e cai novamente começando a ser asfixiado novamente. E assim várias vezes.

Não desvieis o olhar!

A outra razão pela qual desviamos o olhar é a vergonha. Já disse o Espírito Santo: "A ti, Senhor, cabe a justiça e a nós a vergonha na cara!"

Desviamos o rosto, por vergonha, porque olhar o rosto d'Ele nos obriga à conversão. E não queremos nos converter.

Porque tememos encontrar naquele Rosto, tal como Pedro, um olhar que penetre no íntimo de nossas almas e nos faça chorar amargamente.

Tememos que nossos olhares se cruzem.

Temos vergonha do olhar de Cristo, porque esse olhar nos diz: "Até aqui chegou o meu amor por ti. Daqui para frente só posso oferecer-te a minha justiça. Se tanto amor não te constrange, quem sabe a justiça te faça mudar."

Filhos de minha alma, lembrai-vos de que foi diante de um "Cristo muito chagado" que Teresa de Ahumada morreu para sempre, para que nascesse verdadeiramente a Madre Teresa de Jesus, reformadora do Carmelo.

Permiti que a visão de tanto sangue, de tanta chaga, de tanta dor penetre o mais íntimo de vossas consciências. Permiti que essa visão purifique vossos pensamentos, inflame vossa vontade, concretize a vossa firmeza, particularmente nos momentos de contradição.

E, especialmente, adorai esse Sangue vertido e esse Corpo chagado na Santíssima Eucaristia.

Recebeis o Senhor no Sacramento, no dizer de S. Pedro Julião Eymard, em "estado de vítima", ou seja, como estava na cruz, porém de um modo incruento. Recebeis o Senhor como tantas vezes o evitais ver...

Por isso, quando comungardes, não deixeis de consolar a Jesus, de beijar-lhe as suas chagas Santíssimas, de encontrar dentre todas uma que mais vos toque a alma e na qual possa vosso espírito dizer: habitarei na casa do Senhor por toda a minha vida.





Comentários