MUROS

 

Quando consideramos a vida dos seres humanos antes da Encarnação de Nosso Senhor, percebemos que três muros nos separavam de Deus: a natureza, o pecado e a morte. 

A natureza, ou seja a essência das coisas, nos separava de Deus em duas realidades: primeiro pelo simples fato de não sermos deus, de não termos um modo de participar de seu próprio Ser Divino; e segundo porque depois do pecado original, a nossa natureza ainda assumiu toda decadência própria do pecado. O ser humano não fora criado participante da natureza de Deus, mas à sua imagem e semelhança, o que já era muito. Porém o pecado original destruiu essa imagem e semelhança de modo que os homens, a medida em que avançavam no pecado, tanto mais rebaixavam a sua própria natureza distanciando-a ainda mais de Deus.

O pecado, incitação do demônio - que é pecador desde o princípio - e consentido pelo ser humano criou um muro ainda maior. Um muro que ora levantamos mais, ora derrubamos um pouco, mas sempre um muro. Deus jamais deixou de querer estar ao nosso lado, mas nem sempre nós quisemos estar do lado de Deus. E quando o homem volta-se contra Deus, acaba por voltar-se contra si mesmo no sentido de natureza e de pessoa. No sentido da natureza humana nos muramos uns aos outros, muros com brechas que só nos permitem enxergar o outro a partir do muro que levantamos. E nessa observação o outro nos vale o quanto nos possa ser útil. Mas também um muro que levantamos dentro de nós e contra nós. Um muro que tenta abafar o grito de nossas almas por Deus e pela vida que Ele nos oferece. Um muro que termina por cair por sobre nós mesmos.

E a morte era o terceiro muro. A morte também não conduzia a união com Deus, mas a um tempo de espera. Uma espera no tempo da eternidade onde "um dia são como mil anos e mil anos como um dia"... as almas, mesmo as dos justos, se não sofriam o castigo do inferno, por um lado; por outro lado também não contemplavam a Deus: o Paraíso, o Céu estava fechado.

Mas Nosso Senhor derrubou esses muros.

Derrubou o muro da natureza duplamente: derrubou-o ao encarnar-se. Ou seja, se o homem não podia ascender à natureza divina, Deus desceu à natureza humana. Deus não pediu do homem o que fosse impossível, mas fez Ele mesmo o impossível para dar ao homem a possibilidade de unir-se com Ele. Podemos assim, como diz o Espírito Santo: "sermos participantes da natureza divina", uma vez que Cristo assumiu a nossa natureza humana.  Mas, como disse, não foi uma, mas duas as vezes que o Senhor derrubou o muro da natureza. Derrubou-o uma segunda vez na véspera de sua paixão pelo Sacramento da Eucaristia. Ali, diferente dos outros sacramentos, o Senhor não fez com que um elemento material (água, óleo...) fossem portadores de uma graça, mas destruindo a natureza do elemento material, ou seja, do pão e do vinho, pôs no lugar a sua própria substância, tornando-os não meros comunicadores de uma graça, mas o Próprio Autor da Graça.

Não recebemos a Cristo no pão e no vinho, ou através deles. Pelas palavras de Nosso Senhor, o pão e o vinho são destruídos em sua natureza, restando só a aparência, e a natureza destruída dá lugar à natureza mesma do Verbo Encarnado. Assim, a participação na vida e na natureza de Deus mesmo não são realidades de um futuro que não sabemos quando chegará, mas são parte da nossa vida aqui nesse mundo. A vida eterna, especialmente na visão do Evangelista S. João, não começa na nossa morte, começa quando conhecemos a Cristo. E conhecer na Sagrada Escritura não é só saber quem é, mas ter uma real intimidade com o outro ao ponto de que se torne uma só coisa com ele. O verbo conhecer tantas vezes indica a união carnal de marido e mulher... Assim conhecemos a Cristo tornando-nos um só Corpo com Ele, união iniciada no Batismo e consumada em cada Eucaristia.

O muro do pecado foi destruído por Cristo no mistério de Sua Morte. Ao morrer, como diz o Espírito Santo, "Ele fez-se pecado". Quer dizer, na Cruz a sentença de morte que pendia sobre nossas cabeças foi assumida por Cristo e, através de sua morte, Ele "rasgou o antigo documento", ele nos reconciliou com Deus. A morte de Cristo não foi um "faz-de-conta" assim como não é um "faz-de-conta" o perdão que Ele nos alcançou. A justificação não é Deus "fazer-de-conta" que não temos pecados, ou revestir-nos com uma capa de justiça... A justificação é o absoluto perdão, cuja única condição exigida é a conversão.

Sem conversão, isto é, arrependimento e mudança de vida, não há perdão. Não por deficiência da misericórdia de Deus ou por uma sua implacável justiça. Não. Se não somos perdoados é porque fomos nós que nos fechamos ao perdão que Deus constantemente quis nos dar.

O muro do pecado também foi destruído pela vida de Nosso Senhor. Fazendo-se homem e vivendo nesse mundo, Nosso Senhor ensinou-nos com palavras e exemplos a vida da santidade. Não queria Deus colocar-nos no mesmo lugar que estávamos antes do pecado original, quis pôr-nos mais acima. Portanto Cristo nos ensina esse caminho, sendo Ele mesmo o modelo que devemos seguir.

E o muro da morte Cristo derrubou pela sua Ressurreição. Ao ressuscitar Cristo "converteu" a morte. De má e inimiga dos seres humanos ela acabou por se tornar uma irmã e amiga, que nos faz o imenso favor de "transportar-nos" para Cristo. No momento de nossa morte, Cristo nos diz como aos discípulos: "Vamos para a outra margem!" e atravessamos o mar da vida com Cristo a nos conduzir à essa nova margem de eternidade feliz.

Mas enquanto estamos nessa vida somos vitoriosos sobre a morte quando não pecamos. Aquele que não peca é como se tivesse tirado o ferrão da morte. Por isso S. Paulo podia dizer: "Onde está o teu ferrão, ó morte?" Quem vive na santidade passa pela morte, mas sem o ferrão, ou seja sem o castigo. Passa pela morte do corpo, mas que conduz à vida da alma.

Três separações se convertem em três uniões. Três muros se convertem num quarto nupcial.

Queridos amigos, especialmente hoje ao considerarmos a Santíssima Eucaristia, agradeçamos ao Senhor que abaixou-Se até nós, fazendo-se por nós uma aparente migalha de pão, para que pudéssemos ter em nós a Sua Vida e a Sua Morte. 

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