MATRIMÔNIO


"Já não são dois, mas uma só carne". Esta frase que aparece nas primeiras páginas da Sagrada Escritura, referindo-se ao homem e à mulher, são repetidas por Nosso Senhor Jesus Cristo quando eleva a união do homem e da mulher à dignidade sacramental, afirmando, ao mesmo tempo a indissolubilidade do vínculo que é gerado por esse Sacramento.

O Apóstolo S. Paulo, no capítulo V da Carta aos Efésios retoma o tema do Matrimônio e repetindo as mesmas palavras, assinala que se trata de um grande mistério, interpretado por ele, S. Paulo, em relação a Cristo e à Igreja. 

A palavra grega mysterion pode ser traduzida de dois modos distintos e, de certo modo, antagônicos na nossa compreensão atual. Na verdade, mysterion traduz-se ora como mistério, ora como sacramento. Por mistério hoje compreendemos algo oculto, escondido, difícil de se compreender; e a definição tradicional de Sacramento é sinal eficaz da graça, ou seja, ao passo que (na nossa compreensão atual) o mistério é algo escondido, o sacramento estaria no extremo oposto, como algo sinalizado (sinal eficaz...).

Todavia, a possibilidade de que a mesma palavra possa ser traduzida desses dois modos, nos dá a entender que, na verdade, em algum momento, essas duas palavras são compreendidas como sinônimos. E assim o é.

O que vemos e ouvimos nos Sacramentos são sinais e palavras que revelam, mas ao mesmo tempo escondem, uma realidade superlativamente imensa (não teria como referir-me a isso sem alguma redundância...). Por exemplo, no Batismo, nosso corpo suportaria ver todo o mistério pascal de Cristo e aquela criança posta sob a Cruz, sendo livre de todo domínio de satanás que a partir de então foge dela, ver o Sangue e a Água que jorram do lado aberto de Cristo lavarem essa criança em seu corpo e em sua alma e, virmos o Espírito Santo tomar posse daquele corpinho como um Rei toma posse do seu palácio?

Não.

Então o Senhor instituiu e deu à sua Igreja sinais que realmente realizam o que significam - não são símbolos ou manifestações de piedosas aspirações - mas que por um lado escondem a grandeza do que é significado.

Assim os Sacramentos em geral são revelados e velados pelos sinais sacramentais. São sinal e mistério, ao mesmo tempo.

Mas, depois dessa breve introdução, gostaria de ater-me ao Sacramento do Matrimônio.

Único Sacramento chamado de "grande" por S. Paulo: "é grande esse mistério... é grande esse sacramento". E a razão de sua grandeza é a aplicação que o Apóstolo faz desse Sacramento a Cristo e à Igreja, ou seja, a cada alma fiel.

Vários Santos como S. Bernardo, S. Teresa, S. João da Cruz etc ressaltam a realidade esponsal que une Cristo e a alma de cada cristão. S. Bernardo particularmente dedicará o seu comentário ao Cântico dos cânticos sob essa perspectiva, sem a qual, o livro em si, se perderia em considerações até mesmo inadequadas...

Mas, se na essência do Sacramento da Eucaristia está a transubstanciação, na essência do Matrimônio está a união. Mas não só uma união de pensamentos e vontade, mas uma própria conjunção física, sem a qual o Sacramento não seria consumado, e conjunção física que é capaz de gerar vida. Essa conjunção física, na linguagem da Sagrada Escritura, pode ser compreendida nesse ser uma só carne, numa união tão intensa que, de dois corpos diferentes, encontra-se uma complementaridade que se tornam um só não apenas no momento em que ela ocorre, mas que é perpetuada nos frutos mais imediatos dessa mesma união, os filhos. Os filhos são essa "uma só carne" continuada, mantida, estabelecida.

Mas se isso se torna natural na vida dos que são chamados por Deus ao matrimônio, S. Paulo assinala que é necessário - não facultativo - que de modo sobrenatural ocorra com a Igreja, ou seja com os fiéis em sua plenitude. Então precisamos compreender de que modo podemos tornarmos uma só carne com Cristo. 

É claro que isso se dá, por exemplo, cada vez que recebemos a Santíssima Eucaristia, que é Nosso Senhor Jesus Cristo com seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade. Mas, do mesmo modo, que a união conjugal é o ápice de uma comunhão de pensamentos, ações e vida, a união com Cristo no Sacramento não pode ser apenas um ponto de partida, mas sobretudo um ápice, um cume, um ponto de chegada.

Para isso, e tendo sempre em vista o "ser uma só carne", gostaria de oferecer uma compreensão sobre a Cruz. 

Quando olhamos o Cristo crucificado, a primeira vista vemos a dor e o sofrimento, mas num segundo (ou milésimo) olhar podemos compreender como Cristo e a Cruz se tornam "uma só carne", o Corpo do Senhor nela cravado, o seu Sangue que a reveste de púrpura, criam uma união quase ontológica do Cristo e da Cruz. Realmente, fisicamente, Cristo e Cruz se confundem, onde termina a Cruz e onde começa o Cristo? Mal podemos distinguir.

Assim, a união esponsal, o matrimônio místico entre Cristo e a alma fiel não pode prescindir da Cruz. Da Cruz como "parte" de Cristo e da Cruz também como "leito conjugal". Nesse mundo, a nossa união com Cristo, nosso matrimônio com Ele, não se dá senão pela Cruz e na Cruz.

A união com Cristo sem sofrimentos, sem penas, sem dores é o que chamamos de visão beatífica. É do céu, não da terra. Nesse mundo o nosso Matrimônio com o Senhor não se dá apesar da Cruz, mas na Cruz.

E é essa, concretamente, a causa da maior parte dos nossos sofrimentos: insistirmos na ideia do "apesar", e não amarmos a Cruz com o mesmo amor com que amamos a Cristo. A Igreja, em sua liturgia, ao louvar a Cruz, de repente, se vê louvando a Cristo e louvando a Cristo, "confunde-se" louvando a Cruz.

É dessa "confusão" que precisamos.

Amar a Cristo e não amar a Cruz, é a causa da maior parte dos nossos sofrimentos, que se vistos, com o mínimo de objetividade, são geralmente menores do que se apresentam.

Mas há também os sofrimentos grandes, tanto maiores, quanto atingem aqueles que amamos. É difícil, lembrava S. Pio de Pietrelcina, beijar a mesma mão que nos fere. Mas são essas as horas em que o nosso Matrimônio com Nosso Senhor se torna mais forte, mais intenso, praticamente palpável. Não está longe aquele que permite que sofremos, ao contrário, se não O vemos é justamente porque está perto demais.

Imagine que esposo e esposa encostem nariz com nariz e abram bem os olhos, não verão outra coisa que um borrão, que uma forma esquisita, mas é essa forma esquisita o amor de sua vida que não vêem em toda a sua beleza justamente porque está muito perto. Quando não vemos mais a beleza de Deus não significa que Ele esteja longe, talvez seja porque está muito perto, como na maravilhosa expressão de S. Agostinho: "interior intimo meo" ; mais interior que o meu mais íntimo, maior do que eu o que eu possa ter de "mais grande"... 

É amar a Cristo e a Cruz, amar a Cristo com a Cruz e, ousaria dizer, amar a Cruz como amamos a Cristo, o que torna suportável essa vida, que gera vida para nós e para quem amamos e torna feliz aquela vida que há de vir.

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