VAI

S. José de Anchieta, enquanto era cativo dos índios escreve o poema à Virgem Maria na praia de Iperoig

"Olá! Bom dia.
Então, decidi uma coisa: você vai para o Brasil.
Na verdade, eu estou dizendo que você vai, não sei se você vai chegar. 
Como você sabe serão meses no oceano, onde além de perigos naturais, como tempestades, há ainda os piratas que, de modo geral, são protestantes. Caso eles interceptem seu navio, pode começar a fazer sua contagem regressiva para a eternidade.
Se você não pegar uma doença no navio, se o navio não naufragar e nem for atacado por piratas, muito provavelmente você chega no Brasil.
Lá você terá muitas novidades: há doenças que você nunca imaginou, há o ódio dos senhores de terra, porque somos contra a escravidão dos índios, há o ódio dos índios que acham que estamos do lado dos senhores de terra... mas fique tranquilo. Não são todos os índios que não gostam da gente. Há alguns que gostam muito de nós, especialmente se estivermos bem temperados. Sim, eles comem a gente.
Há também animais que nem nos seus piores sonhos você imaginou. Cuidado, geralmente quanto menores, tanto mais mortíferos.
Dizem que lá tem muita riqueza. Mas você fez voto de pobreza, portanto não poderá ter nada seu.
Lá ainda não temos convento, por isso você poderá morar em barracas de palha, que também serão sua igreja. Na hora de dormir, você pode se ajeitar embaixo do altar.
Existem praticamente três grupos que querem se matar: espanhóis, portugueses e índios. Você deve colocar-se entre eles para que vivam em paz. Às vezes os índios se unem a franceses e holandeses protestantes que querem conquistar o Brasil. Há guerras.
Os índios não falam nossa língua. Você terá que aprender a deles.
Espero que seja feliz lá, porque pra cá, muito certamente você não volta."
Queridos amigos, ainda que nem sempre fosse dito desse modo, todo missionário que vinha para cá nos primeiros tempos após o descobrimento tinha essa consciência. Só o fato de vir para cá já mereceria de nossa parte um profundo respeito.
Nem todos vieram com as intenções mais elevadas, mas podemos ter a certeza que a maioria veio para se gastar pelo novo mundo. Nessa intenção ocupavam lugar especial os índios. 
Ao chegar na Europa a notícia da descoberta de um novo continente e que nele havia pessoas, especialmente os recém-fundados jesuítas sentiram o apelo para dar a essas almas o conhecimento de Jesus Cristo e de sua doutrina. O seu pensamento era razoavelmente simples: "Sem Jesus, ninguém se salva. Precisamos dar Cristo para eles. Vamos!"
E foram.
E dentre eles o que veio a ser conhecido como Apóstolo do Brasil: São José de Anchieta, veio para cá com dezenove anos, era jesuíta há dois. Quando veio, vinham dois navios: um espatifou-se nas pedras, próximo a Salvador e o de Anchieta ficou encalhado... Enquanto o consertavam, Anchieta veio à terra firme para buscar comida. Encontrou uma indiazinha muito doente, instruiu-lhe na fé e batizou-lhe com o nome de Cecília. Pouco depois ela entregava sua alma a Deus. Só por isso, para Anchieta, tudo já tinha valido a pena.
Haverá lugar no país que não tenha as suas pegadas?
Quantas Igrejas ainda conservam os púlpitos nos quais o Santo pregou!
E não só pregou. Pregou, ensinou gramática (aos jesuítas ensinava o tupi, e aos índios o português e o latim), escreveu peças de teatro e poesias, muitas poesias, através das quais aparece o grande catequista e o coração apaixonado por Cristo. Chegou a oferecer-se como cativo aos índios para evitar guerras. Anchieta é o Xavier do Brasil.
O seu dia era, de forma resumida ser unicamente um sacerdote à disposição de todos (e como complemento era também médico, enfermeiro, professor, conselheiro etc). E à noite escrevia aulas, gramáticas, poemas e peças teatrais. No dia 09 de junho de 1597, encontrou o descanso: partiu para a eternidade.
Hoje, ao celebrarmos sua memória, percebemos que ainda há muito que fazer. S. João Paulo II, que o beatificou, recordava ao mundo a necessidade da "nova evangelização", ou seja, não é que a mensagem de Cristo seja estranha ao mundo moderno, mas perdeu sua força. E cabe a nós desvelar essa força propulsora que vive em cada página do Evangelho.
S. José de Anchieta e sua grande amada, a Virgem Maria, intercedam por nós para que continuemos aquele labor, com aquele amor que viveu o Apóstolo do Brasil.
Levando em conta a solenidade próxima do Corpus Domini, ofereço novamente uma poesia de Anchieta sobre a Eucaristia: 
Ao Santíssimo Sacramento

Oh que pão, oh que comida,
Oh que divino manjar
Se nos dá no santo altar
Cada dia.

Filho da Virgem Maria
Que Deus Padre cá mandou
E por nós na cruz passou
Crua morte.

E para que nos conforte
Se deixou no Sacramento
Para dar-nos com aumento
Sua graça.

Esta divina fogaça
É manjar de lutadores,
Galardão de vencedores
Esforçados.

Deleite de enamorados
Que com o gosto deste pão
Deixem a deleitarão
Transitória.

Quem quiser haver vitória
Do falso contentamento,
Goste deste sacramento
Divinal.

Ele dá vida imortal,
Este mata toda fome,
Porque nele Deus e homem
Se contêm.

É fonte de todo bem
Da qual quem bem se embebeda
Não tenha medo de queda
Do pecado.

Oh! que divino bocado
Que tem todos os sabores,
Vinde, pobres pecadores,
A comer.

Não tendes de que temer
Senão de vossos pecados;
Se forem bem confessados,
Isso basta.

Que este manjar tudo gasta,
Porque é fogo gastador,
Que com seu divino ardor
Tudo abrasa.

É pão dos filhos de casa
Com que sempre se sustentam
E virtudes acrescentam
De contínuo.

Todo mal é desatino
Se não comer tal vianda,
Com que a alma sempre anda
Satisfeita.

Este manjar aproveita
Para vícios arrancar
E virtudes arraigar
Nas entranhas.

Suas graças são tamanhas,
Que se não podem contar,
Mas bem se podem gostar
De quem ama.

Sua graça se derrama
Nos devotos corações
E os enche de benções
Copiosas.

Oh que entranhas piedosas
De vosso divino amor!
Ó meu Deus e meu Senhor
Humanado!

Quem vos fez tão namorado
De quem tanto vos ofende?!
Quem vos ata, quem vos prende
Com tais nós?!

Por caber dentro de nós
Vos fazeis tão pequenino
Sem o vosso ser divino,
Se mudar.

Para vosso amor plantar
Dentro em nosso coração
Achastes tal invenção
De manjar,

Em o qual nosso paladar
Acha gostos diferentes
Debaixo dos acidentes
Escondidos.

Uns são todos incendidos
Do fogo de vosso amor,
Outros cheios de temor
Filial,

Outros com o celestial
Lume deste sacramento
Alcançam conhecimento
De quem são,

Outros sentem compaixão
De seu Deus que tantas dores
Por nos dar estes sabores
Quis sofrer.

E desejam de morrer
Por amor de seu amado,
Vivendo sem ter cuidado
Desta vida.

Quem viu nunca tal comida
Que é o sumo de todo bem,
Ai de nós que nos detém
Que buscamos!

Como não nos enfrascamos
Nos deleites deste Pão
Com que o nosso coração
Tem fartura.

Se buscarmos formosura
Nele está toda metida,
Se queremos achar vida,
Esta é.

Aqui se refina a fé,
Pois debaixo do que vemos,
Estar Deus e homem cremos
Sem mudança.

Acrescenta-se a esperança,
Pois na terra nos é dado
Quanto lá nos céus guardado
Nos está.

A caridade que lá
Há de ser aperfeiçoada,
Deste pão é confirmada
Em pureza.

Dele nasce a fortaleza,
Ele dá perseverança,
Pão da bem-aventurança,
Pão de glória.

Deixado para memória
Da morte do Redentor,
Testemunho de Seu amor
Verdadeiro.

Oh mansíssimo Cordeiro,
Oh menino de Belém,
Oh Jesus todo meu Bem,
Meu Amor.

Meu Esposo, meu Senhor,
Meu amigo, meu irmão,
Centro do meu coração,
Deus e Pai.

Pois com entranhas de Mãe
Quereis de mim ser comido,
Roubai todo meu sentido
Para vós

Prendei-me com fortes nós,
Iesu, filho de Deus vivo,
pois que sou vosso cativo,
que comprastes

Com o sangue que derramastes,
Com a vida que perdestes,
Com a morte que quisestes
Padecer.

Morra eu, por que viver
Vós possais dentro de mim;
Ganha-me, pois me perdi
Em amar-me.

Pois que para incorporar-me
E mudar-me em vós de todo,
Com um tão divino modo
Me mudais.

Quando na minha alma entrais
E dela fazeis sacrário,
De vós mesmo é relicário
Que vos guarda.

Enquanto a presença tarda
De vosso divino rosto,
O saboroso e doce gosto
Deste pão

Seja minha refeição
E todo o meu apetite,
Seja gracioso convite
De minha alma.

Ar fresco de minha calma,
Fogo de minha frieza,
Fonte viva de limpeza,
Doce beijo.

Mitigador do desejo
Com que a vós suspiro, e gemo,
Esperança do que temo
De perder.

Pois não vivo sem comer,
Como a vós, em nós vivendo,
Vivo em vós, a vós comendo,
Doce amor.

Comendo de tal penhor,
Nele tenha minha parte,
E depois de vós me farte
Com vos ver.

Amém.

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