DO QUÊ?

Já passaram algumas décadas desse fato, mas sempre me lembro dele no dia de hoje. 
Estava numa igreja terminando os preparativos para uma concelebração em honra do então Bem-aventurado Josemaría Escrivá. Até que dei-me conta que não havia uma imagem dele. Procurei uma senhora e pedi que providenciasse imediatamente um quadro para que o puséssemos junto do altar.
Poucos minutos chegava o quadro e enquanto arrumava-o no presbitério, uma outra senhora, que não conhecia S. Josemaría perguntou-me: "Quem é esse padre?".
"É o beato Josemaría Escrivá, fundador do Opus Dei", respondi.
A senhorinha ficou apenas com a minha primeira palavra e me perguntou o que era um beato. Tentando abstrair toda teologia que pudesse ter naquela hora, respondi: "É uma pessoa santa." E ela continuou: "Ah, então é um santo?" Eu devo ter respondido que, de certo modo era (ainda não tinha sido canonizado, mas isso só iria complicar mais a senhorinha...). 
Quando pensei que nosso diálogo já tinha encerrado, ela fez uma derradeira pergunta: "Mas... é santo do quê?"
Essa pergunta pra mim foi a pior para responder. 
Eu poderia ter dito que ele foi um instrumento escolhido por Deus para recordar à humanidade uma mensagem tão antiga e tão nova como o Evangelho: todos nós somos chamados por Deus à santidade e ao apostolado. Essas "coisas" não são só para os padres e as freiras, mas todos que foram batizados recebem de Deus esse chamado, e a maioria o irá viver no meio das trivialidades da vida quotidiana. 
Viverão a santidade e o apostolado sendo bons esposos (o que inclui não ficar com raiva porque a esposa se atrasou porque não sabia que brinco usar) boas esposas (o que inclui compreender que o marido tem necessidade de ver pela quinta vez, agora em câmera lenta, o mesmo lance do futebol que sequer foi gol), ser bons pais (o que inclui meter-se na vida dos filhos, ainda que eles não entendam), ser bons filhos (buscando ter por principal amigo, amigo mesmo, daquele que se conta segredo, o pai e a mãe), ser um bom trabalhador (cumprindo bem as tarefas, deixando de lado o celular, chegando e saindo na hora certa, sem jeitinhos), ser um bom patrão (vendo nos funcionários também as necessidades de suas almas, ajudando-os a encontrar Deus), sendo um bom estudante (fazendo o tempo render na escola e no estudo em casa e tirando as notas mais altas que sua capacidade intelectual permita) etc etc etc.
S. Josemaría é o Santo que penso quando um ônibus atrasa, quando o motor do carro não funciona, quando o alarme dispara sozinho, quando preciso encontrar uma vaga de carro, e... quando não sei se o ovo já cozinhou. 
Porque ele me ensinou que o meu encontro com Deus se dá nessas coisas pequenas que fazem o meu dia-a-dia. Que as coisas boas são dons de Deus, pelos quais lhe devo agradecer como o mais agradecido dos filhos, porque realmente Deus é meu Pai. Que o que diz o Salmo II, Filius meus es tu, é uma declaração diária de Deus para mim.
Ele também me ensinou que as coisas "ruins" são carinhos de Deus. São modos que Ele têm de me unir mais estreitamente a Ele na Cruz, na contradição, nos insultos, nas calúnias... em todas essas circunstâncias Nosso Senhor e Nossa Senhora estão ainda mais perto de mim, dando-me a força d'Eles para não desanimar e continuar por um caminho que sei qual é o fim: o céu; só não sei todos os "detalhes" que passarei para chegar.
Mas também sei como chegar, resumidamente: começando e recomeçando. Vencendo um pecado um dia e sendo vencido no outro. Conseguindo a heróica façanha (!) de não comer manteiga naquela manhã, ainda que na anterior tenha comido... E quando tudo parecer perdido, tem um sacramento da alegria, chamado confissão, que devo buscar constantemente, porque peco constantemente...
Ele me ensinou que, como sacerdote, abri mão de meu próprio eu para o ceder a Cristo, e não só quando administro os Sacramentos. Ensinou-me que o padre deve ser um tapete que serve para que os outros pisem macio, que o padre é um envelope que traz a carta que é Jesus. A carta é o que importa; o envelope, rasga-se e joga fora.
Ele me ensinou também que na maior parte das vezes eu não vou ter a menor vontade de fazer o que devo: rezar, trabalhar, fazer penitência... e que Deus fica mais contente comigo quando faço sem vontade. Me ensinou que o rosário é como uma serenata à Virgem, onde ainda que vez ou outra eu erre uma nota, ou me distraia, Ela fica contente que eu esteja ali, dizendo-Lhe elogios.
Ele me ensinou que não posso duvidar da Providência de Deus quando Ele me ordena algo e, mesmo que pareça um louco, me lanço no que me manda confiante de que me arrumará os meios. Sejam eles francos suíços ou dólares americanos ou reais brasileiros, para Deus não importa, Ele providenciará.
Ele me ensinou que a morte, não é tão feia... é um encontro. É um abrir de janelas para um novo sol, numa primavera sem fim, um encontro com o Amor.
Quando dei por mim a senhora já tinha dado um suspiro e talvez fosse embora sem a resposta, porque pelo menos a maior parte dessas coisas passou diante do meu pensamento naqueles poucos segundos.
"Santo do quê?"
Ainda estava a questão...
E eu não podia dar outra resposta: "Minha senhora, pra mim, ele é santo de tudo..."



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