OVERDOSE


Monjas carmelitas lavando roupa. A segunda é a Doutora da Igreja, Santa Teresinha. Geralmente ela ficava bem chateada nessas horas porque uma irmã desengonçada sempre acabava jogando água em seu rosto. 

Chama-se de overdose ou "superdose"  quando se dá a um organismo mais do que ele possa suportar de determinada substância.
Na minha experiência na direção espiritual, percebo que algo semelhante ocorre em algumas almas.
Certo teólogo teria afirmado que o cristão do século XXI ou seria ou místico, ou não seria nada. Mesmo desconhecendo essas palavras, muitos católicos buscam um caminho autenticamente místico, em alguns casos já percorrido por outros, mas o fazem sem preparo, e, por isso, caem nessa "overdose espiritual".
Consideremos que todos somos chamados à santidade, é uma promessa de nosso batismo e a mística é o coroamento da santidade. Mas tal como não se pode pôr os telhados sem as colunas de sustentação, não se pode ter uma autêntica mística precedida, preparada e acompanhada por uma real ascese.
O fato de que uma coisa seja boa, não significa que ela seja boa para mim, nessa intensidade e nesse momento.
Por exemplo: a Adoração Eucarística.
Mais do que ela só a Santa Missa! Mas não se pode querer para si nem para os outros, que se passe muito tempo diante da Santíssima Eucaristia se antes a pessoa não desenvolveu alguma capacidade de atenção, um mínimo de perseverança e uma dose de paciência.
Muitas pessoas saem de um extremo ao outro, às vezes por um zelo ruim, às vezes pelo desejo de compensar.
Uma pessoa que tenha estado à beira da morte por inanição não pode simplesmente comer um banquete. Há que se ir DEVAGAR. E, geralmente esse é o problema.
O fiel propõe a si muitas práticas piedosas e além de serem muitas, são muito intensas, mas sem ter a sua alma preparada para isso. Como é evidente, isso não dará certo. Num primeiro momento o fiel seguirá essa proposta com consolações que são de sua própria mente, geralmente (de um modo discreto) admirando-se de si mesmo por fazer algo tão elevado. Depois, já sem essas consolações reduz parte das práticas ou as faz mecanicamente, até chegar ao ponto em que elas se tornem insuportáveis, o que fará com que a pessoa julgue estar na chamada "Noite Escura", quando, na verdade o que vive é apenas uma decepção consigo mesmo por não ter suportado aquela superdose.
Sabemos que, salvo raríssimas situações (razão pela qual não é comum termos crianças canonizadas que não tenham sido mártires), uma vida espiritual estabelecida custa DÉCADAS de lutas.
Mas, o que tira ainda mais o glamour dessa luta, é que ela, geralmente, é contra UM pecado bem específico.
Não significa que só cometamos aquele pecado, mas que é ele a pedra amarrada no pescoço que não nos permite subir. É esse pecado que têm o "poder" de fazer com que tudo o que se tivesse construído até aquele momento, desmorone por o ter cometido.
Esse pecado, geralmente acontece pelo estado de pressão que a "overdose espiritual" causa na alma e no corpo. Então a pessoa, diante da pressão que ela mesma inventou, cede ao consumismo, à fofoca, à impureza, à gula...
É claro que Deus não cessa de oferecer a graça, e também o demônio não cessa de tentar, mas, na maior parte das vezes, nesse embate a pessoa está lutando sozinha, se debatendo contra si mesma, nem seus aparentes progressos foram fruto de sua abertura à graça, nem suas quedas foram diretamente fruto de uma tentação diabólica.
Isso posto, podemos apresentar o que pode ser um caminho a ser trilhado.
Primeiro a valorização da própria humanidade naquilo que possuiu de mais valoroso. Buscar viver as virtudes humanas, contando é claro com a graça de Deus. Quais são nossas principais dificuldades "espirituais"? Vexações diabólicas? Desertos existenciais? Noite escura?
Não!!!!!!
É falta de HUMILDADE, PERSEVERANÇA, PACIÊNCIA, LABORIOSIDADE, DILIGÊNCIA... todas virtudes HUMANAS!!!
Queremos ser santos, mas ainda não aprendemos sequer a sermos realmente humanos!
Por isso, as práticas espirituais precisam adequar-se à pouca virtude que temos. Desculpe a sinceridade!
Não se pode querer que reze o Rosário inteiro, quem não consegue ser constante ao ponto de ler um livro inteiro...
Não se pode querer que faça uma hora de adoração eucarística quem sequer consegue sentar para estudar por 10 minutos.
É aqui que julgamos a importância da ascese, ou seja, de pequenos exercícios que aparentemente não possuem nada de espiritual, mas que dispõe nosso corpo e nossa alma para uma sadia vida espiritual. Também ela se dá de modo gradual e DEVAGAR.
Uma pessoa que começou há pouco tempo na vida espiritual, se começar a disciplinar-se ou a fazer grandes jejuns cairá mais facilmente no orgulho do que subirá na virtude.
Asceses necessárias e importantes num primeiro estágio: ler livros pequenos e inteiros (desde boa literatura profana como leituras espirituais), estudar, acostumar-se a ficar certos tempos fazendo certa atividade, criar rotina, cumprir suas obrigações em casa e no trabalho.
Como já afirmei acima, não são coisas glamourosas, mas são NECESSÁRIAS. São essas coisas que dão estabilidade à nossa HUMANIDADE para podermos trilhar o caminho da SANTIDADE.
Muitas vezes para que a vivência dessas realidades se torne um hábito consolidado em nós, como já disse anteriormente, leva DÉCADAS.
S. Josemaría lembrava do "diário espiritual" de uma pessoa que praticamente se resumia a: "Comi manteiga. Não comi manteiga." Ou seja, a pessoa tinha se proposto essa pequena mortificação e até ser fiel a ela demorou tempos anotando quando vencia ou quando era vencido pela... manteiga.
É aqui que o ORGULHOSO desiste. E começa a querer pendurar quadros bonitos para esconder as paredes mal rebocadas. Entende essa metáfora?
A chamada noite escura nada tem a ver com as variações de ânimo que experimentamos, ela é na verdade um dos últimos estágios da vida espiritual mais elevada, sendo seguida pela união mística da alma com Deus.
Assim, por exemplo, se refere S. João da Cruz, dizendo que foi a noite que juntou "Amado com amada". A noite escura dos sentidos e depois a do espírito com muita probabilidade sequer serão vividas por nós. Talvez morramos na épica "luta da manteiga". E isso não é VERGONHA.
Não é vergonha que NÃO QUEIRAMOS REZAR, nem ir à Missa, nem adorar a Santíssima Eucaristia.
Não é vergonha que tenhamos mais medo de um banho frio do que do diabo. Ou que escondidos tomemos um gole de coca-cola... Isso é HUMANO.
FAZER O BEM CANSA. E cansa mais do que evitar o mal.
CANSA REZAR, COMO CANSA ARRUMAR A CASA, TRABALHAR BEM, DAR ATENÇÃO AOS FILHOS...
O que não pode acontecer é que estranhemos essas nossas fraquezas como se não fossem próprias da nossa NATUREZA DECAÍDA. E que elas nos paralisem.
Por isso, o mais importante é SABER RECOMEÇAR. E considerar o dia de HOJE.
Como tão belamente escreveu num poema S. Teresinha, para amarmos a Deus só temos o hoje. Não temos mais o ontem já passado e não podemos garantir o amanhã.
Se ontem fomos fiéis, ótimo. Mas precisamos ser hoje.
Se não fomos, temos o hoje para voltar ao prumo.
As dificuldades que encontramos são NORMAIS.
E existem para serem SUPERADAS.
Nesse sentido, agrada mais a Deus o que fazemos SEM VONTADE, porque fazer algo sem vontade, sem consolo, e podendo não fazer significa AMOR.
Por isso, contando com essas dificuldades não podemos nos impor coisas difíceis num primeiro momento. Precisamos ter um conjunto de práticas espirituais que QUALQUER UM POSSA CUMPRIR, para que NÃO NOS DESCULPEMOS caso não cumpramos.
Enfim, queridos amigos, espero que essas reflexões possam ajudar vocês e a mim (somos farinha do mesmo saco) a esperarmos juntos o Divino Espírito Santo, começando e recomeçando nossa vida espiritual.



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