MISERICÓRDIA

"O inæstimábilis diléctio caritátis:
ut servum redímeres, Fílium tradidísti!"
"Ó inestimável amor de caridade
para salvares o servo, entregastes o Filho!"

Queridos amigos, há uma semana celebrávamos a Vigília Pascal na Noite Santa. Tal celebração é tão rica que necessitaríamos de um razoável tempo para conseguirmos compreender toda a sua riqueza e, hoje, de modo especial, quis trazer para os senhores essa frase do Precônio Pascal.
Apenas essa frase.
Creio que nela se compendia o que significa a misericórdia de Deus.
A misericórdia de Deus consiste especialmente nesse fato, nós que somos servos infiéis fomos salvos por Deus que por nós entregou à morte seu próprio Filho. Não podemos compreender a Divina Misericórdia apenas no que diz respeito ao perdão de nossos pecados atuais, mas ao incomensurável ato de amor já praticado por Deus em nosso favor entregando-nos seu Filho.
Se esquecemos desse fato já consumado, a misericórdia de Deus pode, numa compreensão equivocada, tornar-se uma espécie de desculpa pré-selecionada na qual pensamos antes de pecar.
Em Deus tudo é perfeição, de modo que a sua misericórdia e a sua justiça jamais se opõem, ao contrário se iluminam e se completam.
Vivemos tempos difíceis, clamamos pela misericórdia Deus.
Mas o quanto esse clamor tem a ver com nossas culpas?
Pedimos perdão, mas de qual pecados?
Muitas vezes parece que o pecado não existe mais. Caímos numa revolução moral onde sendo proibido proibir todo vício virou virtude e toda virtude foi tratada como vício.
A Igreja mesma, propôs-se através de muitos padres e bispos, a acolher à mesa da comunhão um casal em adultério, mas negava-se a dar a comunhão a um rapaz que ajoelhasse ou a uma moça que modestamente usasse seu véu.
Diante de uma Igreja sem pecados, não pode haver castigo, uma vez que não há o que castigar.
Talvez o problema em reconhecermos o castigo, não seja o castigo em si, mas o que poderia ser a sua causa.
Tínhamos alguma razão para ser castigados?
O quanto fomos humildes e curvamos nossa cabeça, dizendo: Senhor, pequei.
Mas pecados, de verdade, não tanto pecados sociais ou ecológicos, mas nossa impiedade, nossas ofensas diretas a Deus, nossa ofensa à sacralidade do matrimônio e mesmo da vida humana.
Alguém disse que Deus não está do lado do vírus porque não poderia estar do lado mal.
E isso é verdade!
Mas e nós, permitimos que Deus estivesse ao nosso lado?
Não podemos dizer que Deus estava do nosso lado, se nós criamos uma vida sem Deus, sem fé, sem piedade, sem oração, sem penitência...
Deus queria estar do nosso lado.
Mas somos nós que o afastamos.
O que lemos de forma tão repetitiva no Livro dos Juízes? O povo que se afasta do Senhor, Deus quer estar com seu povo, mas o povo não quer, então vêm a desgraça, a opressão, a devastação. O povo se arrepende, pede perdão e Deus imediatamente suscita um juiz que venha libertar o povo. Até que chegamos a Samuel e ao cúmulo da falta de reconhecimento de Deus, quando o povo exige um rei. Os juízes tinham esse nome porque quem era o Rei de Israel era o próprio Senhor. Samuel tenta em vão convencer o povo; mas o Senhor lhe diz: "Não foi a ti que eles rejeitaram mas a mim!"
Rejeitamos o Senhor na busca de uma religião global, onde tudo pode, onde nada é perene e tudo é discutível. Uma religião gelatinosa, sem doutrina, sem moral, com uma liturgia que cultua as pessoas e até ídolos, esquecendo-se de Deus, pondo-se literalmente de costas para Ele.
E agora voltamos, pedindo perdão por termos poluído os rios e extinguido o mico leão dourado (o que sem dúvida não é certo...), mas nos tornamos incapazes de nos converter. Ficamos impenitentes, o que é um pecado contra o Espírito Santo.
Se Deus beneficia com a chuva bons e maus, também não é injusto ao permitir que seu castigo venha sobre maus e bons. Os bons farão penitência, e implorarão a misericórdia de Deus, e assim se tornarão mais santos. E os maus terão mais uma oportunidade de voltar para o Senhor, de converter-se.
Pedimos que Deus tenha misericórdia, mas esquecemos o quanto Ele já usou de misericórdia para conosco.
Pedimos a misericórdia de um Pai que já entregou o Filho por cada um de nós.
Clamemos sim a misericórdia de Deus, por meio do Imaculado Coração de Nossa Senhora, mas a verdadeira misericórdia, que nos "obriga" à corresponder com uma vida santa, como recordava S. Paulo: "a caridade de Cristo nos constrange", ou seja, ao vermos já tanto amor, ao termos consciência de tanta graça e misericórdia, o pecado se torna para nós mais odioso, menos convidativo, mais traição a tanto amor.
Peçamos ao Imaculado, doce e misericordioso Coração de Nossa Senhora que não caiamos nesses cantos de sereia, ainda que venham até de padres e bispos, que por não compreenderem o que é o pecado e as suas conseqüências, acabam mais por incitar os fiéis ao mal como se Deus não fosse justo. Como se não bastasse ter entregue o Filho para salvar o servo, e pior ainda, um servo como eu, como você.
Guarde isso: um povo que não encontra em sua Igreja uma verdadeira pregação contra os pecados, não se converte, não alcança misericórdia e nem salvação. Por isso, bem diziam os antigos que um padre nunca se condena ou se salva sozinho.

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